Meu amado
meu amor de toda a vida
constante
desde que me conheço
reencontro o teu cheiro
o teu abraço
entrego-me como nunca a mais ninguém.
Como pude estar tanto tempo longe de ti?
Na barriga
da minha Mãe te ante-amei e me embalaste e protegeste.
Eis-me inteira para ti
meu amor meu mar natal
a quem regresso todos os verões
e quem sabe
a quem regressarei um dia para sempre.
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Gosto do mar para nele mergulhar de corpo inteiro.
Para ser.
Para estar, não, prefiro a terra.
Nunca gostei
de longas viagens embarcada.
Preciso de estar em chão
firme.
Quando passei dois ou três dias em Veneza
fartei-me dos seus caminhos de água
precisei
de ir deitar âncora na pequena ilha em frente
sem canais, a cheirar a terra seca encharcada de Sol
sem monumentos também:
só uma igrejinha românica
com pássaros amalhados lá dentro.
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Mais uma lua cheia de Agosto
sempre a recebi
com alvoroço
desde que me lembro.
Vim para o pátio
reclinar-me
a recebê-la como me abandono ao Sol.
Mas ela é mais doce
embala-me e quase me adormece.
Num poema dos meus quinze anos dizia-lhe:
Pegas
no meu queixo e murmuras: “Compreendo”.
Não sei
o quê
mas dura ainda hoje esse nosso enlevo
sem palavras.
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O Floco, o cão do David, seu companheiro de infância,
aqui está connosco e com ele mais este Verão
mas só
pelos cinco dias que ele cá vai passar.
Agora o David
é maior e vacinado e parte amanhã para o seu segundo
inter-rail.
O Floco já percebeu
como sempre os cães
percebem quando os donos vão partir
e não o larga.
Consolo-o: “Cresceu, não pára mais connosco.”
“É a vida”, dizem-me os seus olhos tristes.
Está velho acabado, coitadinho do Floco:
magro
que nem um cão, percebo agora a expressão. E tem
um testículo enorme pendente
alvo de zombarias.
Sentimos que não vai durar muito
e fazemos votos
como quem já lhe reza pela alma que a morte
o tome maternalente nos seus braços
sem o fazer
sofrer.
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Passei junto à Casa da Árvore dos Cinco Primos
como eles lhe chamavam
e ouvi-lhe uma pergunta
sussurrada:
Que é feito deles?
Sorrio com certa
tristeza:
Cresceram…
Sinto-lhes a falta
confessa ela,
das suas pernas nuas e risos e rixas e fantasias.
Sobretudo das fantasias.
E pergunta-me:
Crescer, para as pessoas, é perder tudo isso?
Digo-lhe que, em parte, sim, que fazem de conta
de outra maneira.
Podiam. ao menos, vir ver-me,
mesmo que não subissem cá para cima
mas pensamos
ambas que crescer é sempre perder de vista
algo
ou alguém
talvez sobretudo nós próprios.
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Chamam-lhe por cá Levante
ao vento que sopra
do deserto africano
e enraivece o mar e escurece
o céu
plúmbeo
como hoje.
Mas vendo bem hoje está pior
do que é costume.
Toda a noite ventou, trovejou
relampejou.
Parece mentira ter estado ontem na praia
a esta hora
a cumprir o ritual estival do banho.
Dir-se-ia que voltámos atrás
no baile de roda
dos meninos meses
ou avançámos até ao Outono
quase Inverno.
Resta-me a esperança de que o Sol
regresse ao céu
e eu aos braços do mar.
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Gostei de ficar em casa a escrever
quebrando a rotina
de mais de vinte manhãs na praia.
A razão não foi
a chuva como pretextei
foi a vontade de ficar.
É bom alternar o partir com o ficar
a sombra
com o Sol.
Voltei à música clássica como paisagem
ao fundo
ilimita o prazer da escrita e do estudo.
Sou da família dos que precisam para sobreviver
da sua ração quotidiana de música
de colher
a rosa de cada dia
e de escrever também
o poema de cada dia.
Meu espírito-corpo
abastece-se de mar durante o Verão
que bebe
em largos tragos
para a longa travessia do Inverno.
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A Inês lembra-se com saudoso sorriso do tempo
em que ela e o David se arranhavam como cão e gato.
Um dia
recordo eu
a Inês usava os seus dotes de sedução
e o seu verdadeiro amor pelo Floco para lhe monopolizar
a atenção.
Rendido, o Floco nem ligava ao que o David
lhe dizia.
Então ele, rancoroso e inconsolável,
veio-me fazer as queixas:
Por causa dela o meu cão
já não gosta de mim…
Agora o Floco está velhinho
se fosse gente era quase centenário, como a tia Teresa.
E a Inês e o David partiram
cada um para o seu lado
exercendo os seus dotes de sedução fora da família.
Os seus olhos tristes parecem dizer:
Este vai ser
o meu último Verão em Cacela.
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