A ROSA DE CADA DIA
Não sei como agradecer à Vida o poema de cada dia
com que me costuma brindar
a menos que o entulho
das quotidianas desarmonias e maldades soterrem esse
botão a querer romper.
Aqui em Cacela tenho uma roseira
que
apesar de só regada pela água do céu
me presenteia
com rosas todos os dias.
São pequenas
estão mal nutridas
mas o perfume enleva-me como uma música
ou uma dádiva
dos deuses.
Como há quem leve a sério as rosas dos floristas
sem cheiro e sem espinhos!
Diz o povo que não há rosa
sem espinhos
e é verdade: essas de compra foram capadas
do cheiro com que atraem os insectos
e dos espinhos
com que se defendem.
Quem sabe se um dia não seremos
assim
as pessoas
manipuladas geneticamente!
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Aqui eremito entre rosas e conchas.
Todos os dias
as mudo de lugar
na pedra de mármore em que as disponho
para quotidianos jogos
não sei com quem
ausente.
Ou talvez apenas busque
incansavelmente
o número de ouro da harmonia
o “abre-te sésamo”
da perfeição.
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A que jogo jogo com as minhas conchas
no tampo de mármore
da minha casa de banho?
Com quem?
Não sei mas nem por isso
o jogo é menos apaixonante.
Xadrez?
Nunca joguei. Canasta?
Que horror! Faz-me pensar em chás de caridade.
Só joguei
à bisca e ao burro
mas não me apetece recordar como era.
Talvez eu jogue a deitar as cartas a mim mesma
estas conchas.
Que me diz o búzio aqui estacionado
no debrum de mármore?
Não não estou jogando a essas adivinhações.
Não sei
que jogo é este
talvez eu apenas continue
a procurar em cima da pedra de mármore
uma harmonia
perdida.
A minha Mãe dizia sorrindo condescendentemente:
“A minha Maria Teresa com esta idade ainda gosta de brincar”.
É isso Mãe tu é que sabias
continuo a brincar sozinha
sem saber bem a quê.
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Enquanto aqui estou só peço
à minha roseira
junto ao muro
que me conceda a rosa de cada dia.
Uma me bastaria
mas ela é generosa
e dela regresso todos os dias cada vez com mais
rosas.
É como as tetas dos animais e das mulheres:
quanto mais as sugam mais leite dão.
Assim também
os poemas:
quantos mais escrevo mais nascem
do bico da caneta
ou até das tetas
perdão! das teclas
do computador.
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Aqui soletro todos os dias
como quem reza:
“Dá-me a minha rosa de cada dia”
`a pobre roseira
sozinha todo o ano junto ao muro.
Só dela cuido
no Verão
e nem adubo ainda lhe pus este ano.
Ao mar só peço todos os dias que me receba
serenamente nos seus braços
durante mais de uma hora.
Se também um poema por dia me acontecer
considero-me
cumprida
e agradeço
não sei a quem
mas é da família
do mar
o banho a rosa a poesia
de cada dia.
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Às vezes estudo e escrevo com música
de fundo.
Agora é com fundo de rosas
que aqui
todos os dias desabrocham para mim.
A música
desconcentra-me se lhe der atenção e me agradar.
De olhos fechados recebo a música do perfume
das rosas
que acalenta em mim o verso que
vou dar à luz.
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Rosas de compra só para vista?
Ah não! Falta-lhes alma.
O perfume é a alma das flores.
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As rosas que apanho todos os dias
não são
para enfeitar a casa
mas para partilhar
comigo o meu tempo.
Aqui estão em cima da mesa
enquanto escrevo
em jarras e frascos
e os versos
borbotam no ar à sua volta
como borboletas.
Levo algumas para dormirem comigo:
ao meu lado
na mesa de cabeceira
respiram durante a noite
ao meu compasso.
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Desistira da roseira junto ao pátio.
Os ramos secos
faziam-me temer pela sua sobrevivência.
O meu compadre
agrónomo dissuadiu-me de a podar agora.
Mas ela não desistiu
de mim:
descobri hoje uns botõezinhos a piscar os olhos
por entre os ramos secos.
Então desobedeci aos preceitos
agronómicos
empunhando a tesoura e libertando-os
dos troncos mortos.
Depois amamentei-os com o biberão
da mangueira
radiante de ter mais estas crias a ver medrar
todos os dias.
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Ontem à noite esqueci-me de te levar para dormires
comigo.
Esta manhã fui encontrar-te a dizer-me adeus
e à vida.
Concedeste-me os teus últimos suspiros
de um lancinante perfume.
Agonizar em beleza
é vosso invejável privilégio
bem amadas rosas.
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No quintal onde passamos o dia as plantas
convivem
em seus canteiros com as conchas e os fósseis
que vou trazendo da praia.
Alguns dos seres aqui
cristalizados têm milhares de anos
mas bordam o canteiro
das rosas e das efémeras Damas do Crepúsculo
que dormem durante a claridade crua do dia.
Gosto deste casamento da terra com o mar
longínquo.
As minhas plantas amam-no à distância
sem nunca
o ter visto
apenas ouvido ao longe em dias de Levante.
Mas as conchas e os fósseis dizem-lhes que ele é grande
e forte e envolvente.
E eu aproveito para lhes confessar
com estes versos
que ele é o amor de toda a minha vida.
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Pus rosas numa jarra
madressilvas noutra.
Je ne sais pas où donner la tête.
Entre os dois perfumes
minha cabeça adeja
como abelha sôfrega.
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.
As minhas rosas terminam em beleza
a sua vida.
Até seu último suspiro é perfumado.
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Como que me pressentindo de partida
a minha roseira
desentranha-se em rosas
para me dizer adeus
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No coração
da rosa
descubro
uma lagarta
Com asco
e raiva
mato-a
esmago-a
Arrependo-me:
Porque terá
a rosa
mais direito
à vida
que a lagarta?
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Depois de três dias de intenso namoro
de beijos
sugados de longas inspirações de olhos fechados
a osculada rosa deixou cair as suas pétalas
exangues
e pôs a nu a lagarta que jazia no seu
coração.
Repudiei-as (rosa e lagarta) com asco.
Mas sorrio do símbolo
nem sei bem de quê.
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O POEMA DE CADA DIA
(Cacela, Agosto de 2011)
Meu amado
meu amor de toda a vida
constante
desde que me conheço
reencontro o teu cheiro
o teu abraço
entrego-me como nunca a mais ninguém.
Como pude estar tanto tempo longe de ti?
Na barriga
da minha Mãe te ante-amei e me embalaste e protegeste.
Eis-me inteira para ti
meu amor meu mar natal
a quem regresso todos os verões
e quem sabe
a quem regressarei um dia para sempre.
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Gosto do mar para nele mergulhar de corpo inteiro.
Para ser.
Para estar prefiro a terra.
Nunca gostei
de longas viagens embarcada.
Preciso de estar em chão
firme.
Quando passei dois ou três dias em Veneza
fartei-me dos seus caminhos de água
precisei
de ir deitar âncora na pequena ilha em frente
sem canais
a cheirar a terra seca encharcada de Sol
sem monumentos:
só uma igrejinha românica
com pássaros amalhados lá dentro.
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Mais uma lua cheia de Agosto.
Sempre a recebi
com alvoroço
desde que me lembro.
Vim para o pátio
reclinar-me
a recebê-la como me abandono ao Sol.
Mas ela é mais doce
embala-me e quase me adormece.
Num poema dos meus quinze anos dizia-lhe:
Pegas
no meu queixo e murmuras: “Compreendo”.
Não sei
o quê
mas esse nosso enlevo sem palavras
nunca se quebrou.
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O Floco
o cão do David
seu companheiro de infância
aqui está connosco e com ele mais este Verão
mas só
pelos cinco dias que ele cá vai passar.
Agora o David
é maior e vacinado e parte amanhã para o seu segundo
inter-rail.
O Floco já percebeu
como sempre os cães
percebem quando os donos vão partir
e não o larga.
Consolo-o: “Cresceu, não pára mais connosco”.
“É a vida”, dizem-me os seus olhos tristes.
Está velho acabado coitadinho do Floco:
magro
que nem um cão
percebo agora a expressão.
E tem
um testículo enorme pendente
alvo de zombarias.
Sentimos que não vai durar muito
e fazemos votos
como quem já lhe reza por alma
para que a morte
o tome maternalmente nos seus braços
sem o fazer
sofrer.
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Passei junto à Casa da Árvore dos Cinco Primos
como eles lhe chamavam
e ouvi-lhe uma pergunta
sussurrada:
Que é feito deles?
Sorrio com certa
tristeza:
Cresceram…
Sinto-lhes a falta
confessa ela
das suas pernas nuas e risos e rixas e fantasias.
Sobretudo das fantasias.
E pergunta-me:
Crescer para as pessoas é perder tudo isso?
Digo-lhe que sim
que fazem de conta
de outra maneira.
Podiam ao menos vir ver-me
mesmo que não subissem cá para cima!
Mas pensamos
ambas que crescer é sempre perder de vista
algo
ou alguém
talvez sobretudo nós próprios.
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Chamam-lhe por cá Levante
ao vento que sopra
do deserto africano
e enraivece o mar e escurece
o céu
plúmbeo
como hoje.
Mas vendo bem hoje está pior
do que é costume.
Toda a noite ventou trovejou
relampejou.
Parece-me mentira ter estado ontem na praia
a esta hora
a cumprir o ritual estival do banho.
Dir-se-ia que voltámos atrás
no baile de roda
dos meninos meses
ou avançámos até ao Outono
quase Inverno.
Resta-me a esperança de que o Sol
regresse ao céu
e eu aos braços do mar.
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Gostei de ficar em casa a escrever
quebrando a rotina
de mais de vinte manhãs na praia.
A razão não foi
a chuva como pretextei
foi a vontade de ficar.
É bom alternar o partir com o ficar
a sombra
com o Sol.
Voltei à música clássica como paisagem
de fundo:
ilimita o prazer da escrita e do estudo.
Sou da família dos que precisam para sobreviver
da sua ração quotidiana de música
a rosa de cada dia
desabrochando em melodia e ritmo.
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Perdão meu pobre corpo
escravo de mim durante
onze meses no ano.
Anda bebe
abastece-te de mar
por todos os teus poros!
Partiremos em breve
para a longa travessia do Inverno.
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Depois da ausência de dois dias fui ao teu encontro
receosa de que continuasses outro
mas não! Lá estavas tu
sereno e acolhedor
de pele sedosa
a integrar-me em ti.
Há dois dias não te reconheci
enraivecido.
Que mal
te fiz?
Não cheguei a saber a perceber.
Perdoei
sem palavras
e tornei a perder-me em ti duas horas
a fio
e a sair de ti plena
mas nunca saciada.
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..
A Inês lembra-se com saudoso sorriso do tempo
em que ela e o David se arranhavam como cão e gato.
Um dia
recordo eu
a Inês usava os seus dotes de sedução
e o seu verdadeiro amor pelo Floco para lhe monopolizar
a atenção.
Rendido às festas da Inês
o Floco nem ligava
ao David.
Então ele
rancoroso e inconsolável
veio-me fazer as queixas:
Por causa dela o meu cão
já não gosta de mim…
Agora o Floco está velhinho.
Se fosse gente era quase centenário como a tia Teresa.
E a Inês e o David partiram
cada um para o seu lado
exercendo os seus dotes de sedução fora da família.
Os olhos tristes do Floco parecem dizer:
Este vai ser
o meu último Verão em Cacela.
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Dentro do mar salto à corda corro danço em pontas
não me pesa o corpo nem os anos.
No mar
como no amor
regressamos à infância
até talvez a essa pressentida
de olhos fechados
de antes de nascer.
Ao princípio
é o corpo
e no fim também.
Nascemos de um grito
de dor que nos expulsa de um ventre
e é um grito
também que nos abre o respirar.
Viver faz doer.
E morrer? Será que faz doer também?
É o corpo
o responsável.
Mas o prazer exige corpo.
É através
dos sentidos que gozamos a beleza a música a poesia.
Até a Palavra tem de ser ouvida ou lida.
Pobre corpo
frágil transístor de algo que está para além dele
que capta
mas não sabe o que é.
Querido pobre corpo tão precioso.
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Voltei às minhas antigas caminhadas na areia dura
quando o mar recua.
Mas dantes voltava carregada
de conchas e de algas com que fazia quadros.
As algas
quase desapareceram
poluição de certo
sobretudo aquelas
de polpa rosada que se deixavam moldar
e as conchas
também vão escasseando.
Os belos leques semelhando sóis
nascentes ou poentes
onde estão eles?
Consolo-me
com as mancheias de conchas irisadas translúcidas
multicolores
que disponho em tampos de mármore
onde faíscam como jóias.
As únicas que entesouro.
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Só agora no final do Verão cuido de alguns recantos
da casa
e respiro o prazer de recuperar esses espaços
votados ao abandono.
Também só agora arrumo
conchas espalhadas
relegadas para o limbo dos gestos
adiados.
Pergunto-me o que farão os meus netos
aos meus tesouros de conchas
os únicos que vão
herdar.
Sorrio inquieta: também muitos dos meus escritos
permanecerão dispersos em sítios esconsos
e também
nas inúmeras gavetas do meu computador.
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O mar tem seus humores ah sim!
embora previsíveis:
quando chego está liso sereno deixa-se sulcar como
se fosse a polpa macia de um fruto ou nata de leite.
Lá para o meio-dia encrespa-se
e desafia-me. Começo
a galgar suas ondas devagarinho a trote
mas em breve
se encapela para que eu me ponha a cavalgá-lo a toda
a brida.
Afinal aceito os teus humores
excepto
quando viras Levante e não te reconheço
sombrio
raivoso e espumante.
Mas quando dias depois
regressas a quem és
sinto que o amor se sobrepõe
aos teus humores.
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Estavas gelado hoje.
Não só mudas de cara
de dia para dia mas a toda a hora:
mostras-nos
duas ou três caras durante a manhã
mas não arrefeces.
Hoje porém estavas gelado.
Não me ralei:
atirei-me a ti
não de cabeça que não gosto
mas de pernas e braços sôfregos
e acabei
por te reconduzir a mim
à temperatura da minha pele
e em breve nossos corpos se confundiam um com o outro.
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Assim como todos os amores são o mesmo amor
todos os mares serão o mesmo mar.
Os amores
vão e vêm
como as ondas.
Só o amor permanece.
Os meus amores passaram
e com eles as dores
que me causaram e as flores que me deram.
São rimas imperfeitas.
Perfeita é a que faz rimar
amor com mar
que saboreamos de lábios gozosos.
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Sempre a esta hora a Natureza se recolhe
como para rezar.
Ou meditar.
Até o vento
por mais forte que sopre se acalma.
Na cidade
não se dá por isso. É apenas hora de jantar.
Reza por mim que já não sei rezar
tarde de Cacela.
Apenas balbucio estes versos.
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Queridas Damas do Crepúsculo
todos os dias
quando a tarde vem me maravilho
não só com vosso perfume
inebriante
mas também com a variedade das vossas
cores:
de um único ramo nascem corolas vermelhas
roxas amarelas e mestiças de duas cores.
Nem preciso
de as regar. Não gostam da intervenção humana.
Só querem um sítio soalheiro para cumprir as suas
metamorfoses.
Desaparecem após o Verão.
Assusto-me sempre a pensar que morreram
mas no Verão seguinte renascem e expandem-se
como se fosse para sempre.
Estes multicolores ramos
com filhos de todas as cores
são símbolos da pátria língua portuguesa:
da mesma raiz e até de um mesmo pé nascem filhos
de cores diferentes
mas alimentados pela mesma seiva.
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O Verão despede-se com lágrimas de chuva
breve
mas não deixei por isso de ir ter contigo
meu amado
que me recebeste com doce abraço.
Amo-te também quando me acolhes encrespado
com músculos salientes
e em ti me anicho como num cobertor
a enfrentar o frio lá fora.
Mar da minha vida
na juventude e na velhice
na saúde e na doença
no calor e no frio
fiel a uma jura inquebrantável
embora nunca feita em altar nenhum.
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